Não restam dúvidas sobre a seriedade e gravidade deste momento, em que o país e o mundo tentam evitar as consequências mais gravosas de uma séria pandemia. Também, não restam dúvidas de que todos devem respeitar as recomendações das autoridades públicas, no que concerne ao isolamento social.
Igualmente, não se pretende, aqui, de forma alguma, tecer qualquer tipo de crítica à quarentena, em que pesem os danos econômicos e sociais (certamente irreversíveis a curto ou médio prazo), que advirão disso. Mas devemos ter claro que, prender ou multar pessoas que pretendem sair de casa, pelo menos para caminhar em uma praça, para se exercitar nos calçadões de uma praia, ou para apenas sentar em um parque, soa como ato de extrema arbitrariedade, e é algo fortemente ilegal, colocando uma pesadíssima “espada de Dâmocles” na já fragilizada democracia do nosso país.
Explica-se: O artigo 5º, inciso II, da nossa Constituição Federal diz que: “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (a lei não obriga a quem quer que seja a ficar, irredutivelmente, em casa). A mesma Constituição, no inciso XV, do seu art. 5º, diz que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou sair com seus bens”. Além disso, poderíamos passar horas e mais horas tratando de outros direitos fundamentais insculpidos na Carta Maior da República, tais como: o direito de reunião, do livre trabalho, de associação, de cultos religiosos, etc.
Esses direitos, inclusive, são oriundos de cláusula pétrea da Carta Constitucional (cláusula pétrea = “de pedra”, “inquebrável”, “petrificado”…). Ou seja, sequer lei infraconstitucional ou emenda constitucional podem romper essa “pedra” (tal como o átomo, os direitos constitucionais pétreos também são infracionáveis…).
Apenas no caso dos chamados “estado de defesa” e “estado de sítio” pode-se falar (e ainda assim, nos limites previstos na Constituição), em mitigação dos direitos individuais dos cidadãos. E, até o presente momento, não houve a decretação de tais estados de exceção. Nessas situações sim, se vive em um regime de “legalidade extraordinária”, mas, até o presente momento repita-se, o Poder Executivo Federal sequer mencionou a possibilidade da inauguração dessas medidas excepcionalíssimas.
Portanto, os direitos e garantias individuais dos cidadãos estão em pleno vigor, e todas as cláusulas constitucionais (em especial as chamadas garantias pétreas, dentre as quais se destacam o direito de “ir e vir” e de “livre locomoção” em todo território nacional) se mantém intocadas.
E não se deve olvidar que jamais, e em hipótese alguma, qualquer tipo de medida de governadores, prefeitos e do próprio Presidente da República (sem o aval do Parlamento – e nos limites da CF/88) pode derrogar cláusulas constitucionais expressas.
Portanto, e por mais que seja recomendável e sensato que, no presente momento, qualquer cidadão respeite o chamado isolamento horizontal, tal recomendação não pode ser levada ao extremo, no sentido de obrigar, quer seja sob pena de multa, quer sob de prisão ou de qualquer outra sanção, qualquer cidadão em se recolher incondicionalmente dentro de sua casa.
Que o bom senso, a moral, o sentimento de responsabilidade de cada um dos indivíduos os obriguem a seguir as recomendações estaduais e municipais (que, ainda não deixaram de ser recomendações, e apenas recomendações), e evitem sair de casa. O certo é que os “decretos de plantão” não podem obrigar o povo a nada nesse sentido, especialmente sob a ameaça, ainda que velada, de prisão ou multa.
Por outro lado, que esse mesmo bom senso, moral e sentimento de responsabilidade norteiem a responsabilidade de conduta do agente público que, por vezes, de maneira temerária e inconstitucional, levam à prisão o homem e a mulher, que, eventualmente, estão apenas se exercitando em praças, ou apenas descansando ocasionalmente em jardins.
O Estado e seus agentes, não nos esqueçamos, possuem responsabilidade civil (leia-se: dever de indenizar quem foi lesado), quando agem ao arrepio da lei.
O sentimento humano reclama empatia de todos nesse momento, mas o Estado Democrático de Direito não pode ser colocado em segundo plano, sob pena de a liberdade e as leis, tão duramente conquistados nesse país, virarem “pó”, do dia para a noite.
E a todos, o nosso desejo de que o isolamento social seja cumprido, como dever de responsabilidade e empatia para com o próximo, talvez como medida de receio de que uma doença grave alcance nosso lar, mas nunca por medo de atos arbitrários e inconstitucionais partidos do Poder Público.
Marcelo Hilkner Altieri
OAB/SP 154.485